domingo, 20 de maio de 2007

Jornal Gay na Ditadura - Lampião

SIMÕES JR.,Almerindo Cardoso

Darcy Penteado


No fim dos anos 70, o quadro político brasileiro estava em profunda transformação. A chegada de exilados políticos, em contato com as correntes de revolução sexual, em especial na Europa e nos Estados Unidos, trazia um enorme desejo de mudança e a possibilidade de uma retomada na produção do discurso considerado não prioritário.

Crescia no Brasil também o movimento de esquerda, e, a ele, em princípio, estavam ligados também os discursos de gays e lésbicas. Com o avanço do movimento de esquerda, porém, as lutas dos movimentos homossexuais, da mulher e dos negros passam a ser consideradas minoritárias, um combate menor que deveria ser pensado em um momento posterior (Trevisan, 2002, p.338). Importava a luta maior, a batalha do operariado contra as forças opressoras capitalistas. Todas as outras formas de luta estavam, então, relegadas a segundo plano. Outro fator preponderante era a ligação entre o movimento de esquerda e a ala progressista da Igreja católica, o que não abria possibilidade para discussões sobre temas que interessavam às minorias como aborto, liberdade sexual, divórcio e homossexualidade.

Em fins de 1977, um grupo de jornalistas, intelectuais e artistas se reúne na casa do pintor Darcy Penteado em São Paulo. Animados com a entrevista de Wiston Leyland, editor do Gay Sunshine, surge a idéia da “criação de um jornal feito por e com o ponto de vista de homossexuais, que discutisse os mais diversos temas e fosse vendido mensalmente nas bancas de todo o país” (Trevisan, 2002, p.338). Assim nascia o Lampião, que, segundo Green (1999, p.430), tinha “um título sugestivo da vida gay de rua, mas que aludia também à figura do rei do cangaço”. Em edição de Isto é de dezembro de 1977, Aguinaldo Silva, um dos editores do jornal anuncia o título do mesmo e o porquê da escolha do nome:

O nome do jornal? Há uma lista imensa, mas o que me agrada é Lampião: primeiro, porque subverte de saída a coisa machista (um jornal de bicha com nome de cangaceiro?); segundo pela idéia de luz, caminho, etc.; e terceiro, pelo fato de ter sido Lampião um personagem até hoje não suficientemente explicado (olha aí outro que não saiu das sombras) (Isto é. n.53, p.14, dez.1977).

O jornal, em tamanho tablóide, era impresso em cores neutras. Trazia reportagens com personalidades não necessariamente homossexuais, contos, críticas literárias, de teatro ou cinema. Grande destaque era dado às cartas dos leitores, que se tornavam legítimos espaços de visibilidade para a comunidade. Pequenas notas contra os atos preconceituosos da sociedade eram constantes, assim como ataques diretos a homófobos ou a quem agisse de modo politicamente incorreto em relação aos homossexuais. A linguagem “era comumente a mesma linguagem desmunhecada e desabusada do gueto homossexual” (Trevisan, 2002, p.339).

Assumir e orgulhar-se de sua homossexualidade, sair dos guetos, transitar como qualquer outro cidadão, ter livre arbítrio para escolher lugares de lazer, e, acima de tudo, exprimir livremente sua sexualidade são temas constantes em Lampião. Em especial no primeiro ano de sua existência (1978), esta é a tônica do jornal. Em 1979, o orgulho de assumir identidades homossexuais é associado a questões políticas que emergem no panorama brasileiro. 1980 traz discursos homossexuais ligados a movimentos de conscientização homossexual, buscando o seu lugar dentro de um panorama político. Embora não compactuasse com a postura dos militares, a esquerda considerava as questões homossexuais como parte de uma ‘luta menor’. Nesse ano ocorre em São Paulo o I Encontro Nacional de Gays e Lésbicas e não se poder negar a importância do jornal enquanto elemento articulador e divulgador deste evento. Rodrigues (2004, p.285) argumenta, porém, que o mesmo interesse pelo ativismo político que impulsionou o surgimento do jornal foi um dos maiores responsáveis pelo fechamento do mesmo:

É interessante observar que o interesse pelo ativismo político que deu o pontapé inicial para a concretização do jornal vai ser uma das causas pelo (sic) fechamento do jornal. As lutas internas, editoriais, em torno de qual identidade seguir e a possibilidade de um burocratização do movimento ‘guei’ acabaram por descaracterizar o jornal, levando a uma sensível diminuição nas vendas dos exemplares.

A necessidade maior, portanto, além de sair do gueto, era dar voz a uma minoria, servir como veículo de comunicação livre das pressões e/ou visões estabelecidas por outros órgãos de imprensa. Na verdade, boa parte dos participantes do conselho editorial era de jornalistas ou de pessoas ligadas às artes e cultura em geral, mas que percebiam enorme interdição discursiva ao sugerir o tema homossexualidade. Isso é claramente observado num texto do editorial de número 4 do jornal, escrito por Darcy Penteado. Nele, o pintor responde a uma escritora amiga alcunhada de darling (pode-se perceber o jogo de palavras, já que a mesma, querida em inglês, é usada no meio homossexual e pode ter conotação pejorativa). A referida darling, que pode ser uma personagem imaginária, usada para reafirmar a posição do jornal, numa das reuniões do grupo do conselho editorial havia mencionado que não se fazia necessária a existência de um jornal homossexual, o que só aumentaria a discriminação. Segunda ela, os autores poderiam expor suas idéias nas colunas dos jornais onde escreviam. O trecho/resposta de Darcy vem a seguir:

Darling, como você é ingênua!... Somos aceitos nos outros veículos pela nossa capacidade profissional que – apesar de sermos homossexuais, é também útil ao sistema. Portanto, são eles que nos usam e não o contrário. Nossa opinião é aceita desde que não contradiga as normas: dão-nos às vezes umas colheres de chá e com elas conseguimos encher até pratos de sopa, mas se transbordarmos e sujarmos a toalha... já viu, não é? Você acha, por exemplo, que tudo isto que temos dito e continuaremos dizendo nas páginas de LAMPIÃO teria vez na imprensa hetero? A palavra ‘homossexualismo’ e suas decorrentes chegam a ser proibidas ainda em alguns jornais. A citação ‘lésbica’ foi cortada do artigo de um dos nossos colaboradores para um tablóide da imprensa alternativa. Vários desses mesmos tablóides que se apregoam contrários ao poder estabelecido, portanto vanguardistas políticos, negam a vez e a participação aos assuntos sexuais ‘por não serem prioritários’, e assim por diante. As exceções são abertas mais a serviço do machismo ou quando ajudam no faturamento, porque homossexualismo também virou consumo: “HOMOSSEXUAL atropelado quando atravessava a rua”, “cachorro de HOMOSSEXUAL investe contra deputado”, “ANORMAL tenta seduzir rapaz e é agredido”, etc., etc.
Ainda achamos que a melhor forma de se respeitar a integridade alheia e de se fazer respeitado é expor às claras as próprias verdades. Tínhamos então o ideal e a coragem, mas faltava-nos o veículo, até que LAMPIÃO criou essa possibilidade para nós e para os milhares de outros de quem esperamos ser esse jornal um porta-voz. Portanto, darling, aqui estão algumas das muitas razões de LAMPIÃO ter sido aceso, no momento exato e necessário (n.4, p.2, ago. 1978).


Pode-se perceber na análise dessa carta três posições discursivas do escritor/autor da mesma. Em primeiro lugar, ele se inclui no movimento homossexual quando diz “Somos aceitos nos outros veículos pela nossa capacidade profissional (...)”. Num segundo momento, ele observa o movimento como alguém de fora, quando afirma “A palavra ‘homossexualismo’ e suas decorrentes chegam a ser proibidas ainda em alguns jornais”. Num terceiro ato, ele menciona a posição do jornal, completando uma série de assertivas que podem servir para uma melhor visão da formação ideológica do jornal. Tal exemplo se encontra em “Portanto, darling, aqui estão algumas das muitas razões de LAMPIÃO ter sido aceso, no momento exato e necessário”.

Concomitantemente ao período de circulação do Lampião, várias outras vozes se fizeram ouvir enquanto ecos do discurso homossexual. Além de pequenos jornais que circularam em âmbito local, vários grupos organizados surgiram. O Somos, com sede em São Paulo, mas com filiais em várias outras cidades do Brasil, foi o maior deles. O Grupo Gay da Bahia, integrado por Luiz Mott, mencionado também no jornal, é atuante até os dias de hoje. Não é difícil achar, nas páginas do Lampião, referências a vários outros desses grupos: Auê no Rio de Janeiro e em outras cidades, Eros em São Paulo, Facção Lésbico-Feminista em São Paulo, Libertos em Guarulhos, Beijo Livre em Brasília, Terceiro Ato em Belo Horizonte, Fração Gay da Convergência Socialista em São Paulo, dentre inúmeros outros. Eventos de maior porte, dando visibilidade não só aos homossexuais, mas às minorias em geral são organizados e noticiados: A semana de minorias que reuniu negros, mulheres e homossexuais ocorrida na USP e noticiada em no número 10 de Lampião, em março de 1979; o Encontro Nacional de Mulheres, noticiado no mês seguinte; o I EBHO – Encontro Brasileiro de Homossexuais, ocorrido em maio de 1980, todos parte do processo da “briga da esquerda maior contra a esquerda menor” (Lampião. n.23, p.6, abr. 1980).O panorama histórico, o contexto social, o enfraquecimento da ditadura, as várias vozes que ecoam são, dentre outros, fatores que preparam um terreno fértil para o processo de afirmação de identidades e construção de memórias que perduram até os nossos dias.


Um comentário:

PC Guimarães disse...

Beleza, gente! Só falta a imagem do Jornal. Alguém do grupo entre em contato comigo por e-mail. Tenho uma boa imagem de capa do Pasquim